domingo, 23 de maio de 2010

Tempo

Surreal é experimentar a passagem do tempo. Como cupins que devoram a madeira de dentro para fora, a fuga do momento através da linha do tempo é a faminta devoradora de nossa vida.

Categoricamente, mantemos um relacionamento quase que platônico com o que já aconteceu. Particularmente difícil compreender esta relação com o passado. O futuro recebe mais ou menos uma fatia adequada de afeto, já que o futuro é o que nos aguarda adiante, e dele não há como fugir. Mas, ao passado dedicamos poesia, juras de amor eterno, admiração, cuidado e venerada adoração.

O passado, no entanto, é um espaço irretornável. Podemos levar um filho para conhecer uma paisagem da infância, mas a realidade nua e crua daqueles dias está interditada para todos, inclusive para nós mesmos. Por mais registros físicos ou emocionais que consigamos carregar do passado, sempre será ainda menor e menos maravilhosa do que a real experiência – esta sem retorno.

Não importa o que façamos. Com o tempo ninguém vai acreditar no que afirmamos ter vivido. Nem nós mesmos.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Critério Algum

Acredito que o significado do amor nada tem haver com sentimento, mas sim com atitudes voluntárias direcionadas em favor de alguém. Ou seja, amar é agir. A pergunta que não me deixa em paz neste momento é “quem nós amamos?”.

Meu pensamento é que amamos os bonitos, os competentes, os que falam bem em público, os ricos, os esbeltos, os famosos, os líderes, os charmosos, os diplomados e os doutores. É mais fácil dedicar atenção àqueles que fazem por merecer ou que despertam em nós aquilo que nos interessa.

Amamos as qualidades, aquilo que nos interessa. Deve ser por isso que uma gafe, uma barbeiragem no trânsito, um tropeço em público, uma desafinada ou um erro grosseiro nos causam tanto embaraço. Essas coisas nos roubam a capacidade de ser amado pelos outros. Lutamos constantemente para manter o encantamento. A velhice e a doença são sempre as coisas que mais tememos, porque são os principais antagonistas de nossas competências e charme. Nossa aparência é sempre muito mais preservada do que nossa essência.

Creio que não amamos os feios, os desastrados, os desqualificados, os moribundos, os chatos, os burros... Dedicamos a eles no máximo um pouco de nossa piedade. Não há nada que nos interesse numa estirpe de gente sem talento, sem beleza ou sem dinheiro.

É a partir deste pensamento que começo a entender o porquê que Deus revelou o evangelho a gente humilde, iletrada, simples, pecadora. Jesus esteve entre gente desprovida de intelecto e de expertise. A mensagem divina foi entregue a uma categoria de pessoas sem qualquer qualidade especial.

Nós, que entendemos que para amar devemos ter uma espécie de crivo para distribuir o amor às pessoas, devemos perceber que o critério distributivo do amor de Jesus era não ter critério algum.

Deus deixou claro que todo o esforço e todo o charme que insistimos tanto em cultuar não significam nada. Ele confiou a gente humilde e cheia de defeitos sua mensagem e muito mais que isso, deixou essa mesma gente encarregada de transmiti-la a todos os confins da terra. Se Deus fosse premiar alguém por suas competências, não premiaria ninguém.

A única qualidade que Deus espera que tenhamos é a capacidade de amar os outros. Entendo que Deus age da seguinte maneira: ninguém merece amor, por isso todos precisam receber.


sábado, 26 de dezembro de 2009

Deveria Eu Ser Um Católico?

No novo testamento a palavra GRAÇA é empregada para referir a irredutível e desconcertante benevolência de Deus para conosco, ainda que nós sejamos e permaneçamos pecadores, patifes e canalhas. Garante a palavra de Deus que é pela graça, isto é, por bondade divina e não por mérito nosso, que recebemos perdão e salvação deste nosso estado maldito de pecado.

É pela graça e não por algum critério de seleção, que Deus faz derramar a chuva sobre justos e injustos. E é pela graça que as suas misericórdias renovam-se a cada manhã. É pela graça e não por teste de paternidade que Deus nos chama de filhos e permite que nós o chamemos de Pai. É pela graça que Deus oferece uma infinidade de perdão a cada ciclo de tempo e o mesmo procedimento requer de seus filhos.

Paradoxalmente, os protestantes interpretam-se como grandes e credenciados defensores da graça, mas efetivamente são os católicos (muitas vezes tidos como antagonistas dos protestantes) os únicos cristãos a desfrutar graciosa e adequadamente dela. É um item que, em minha opinião, tem riscado o verniz da história do cristianismo ocidental. A característica mais singular da graça, e é isso que me faz pensar sobre tal paradoxo, é o fato de que não há nada que se possa fazer para merecê-la: não se pode barganhar ou extorquir aquilo que Deus se dispõe a oferecer gratuitamente. Essa novidade torna obsoletas todas as mais consagradas práticas religiosas, como ofertas, sacrifícios, promessas, penitências e procedimentos.

O discurso da reforma religiosa foi que a Igreja Católica havia perdido a graça de vista, pois ela estava construindo um império fundamentado na venda de privilégios e na institucionalização. Havia a acusação de que os católicos haviam dado as costas para a mensagem de Cristo, que afirmava não haver sacrifício no mundo que pudesse adquirir perdão ou penitência que pudesse apagar a culpa. A graça era a encarregada de tudo isso. Para os protestantes, os católicos haviam reduzido o cristianismo a um ritual sem vitalidade, pois haviam se esquecido da graça, e por isso eles estavam dispostos a dedicar suas vidas na correção deste desvio. Só que nos últimos séculos, percebo que são os católicos os cristãos mais competentes a desfrutar integralmente da graça, enquanto os protestantes se encarregaram de transformar o cristianismo em ritual e instituição.

Eu, como protestante, digo de peito aberto que resta-nos o discurso e cabe aos católicos toda a herança. Parece inevitável que sempre adquirimos as características daqueles que refutamos. Vou tentar exprimir em palavras meu ponto de vista.

Os católicos entendem que a igreja não é contida por templo algum, ainda que existam templos católicos em todo lugar do mundo (verdadeiro sonho de consumo protestante), e de certa forma entendem que nada neste mundo tem como dar errado. Ou seja, se a Igreja está em todo lugar, Deus está em todo lugar e também o serviço cristão. Os católicos enxergam a igreja não como um lugar, mas como uma condição de segurança e de acesso a Deus, algo muito semelhante ao que Jesus descrevia como sendo o reino de Deus.

Os católicos estão muito mais dispostos (e percebo isso na pele) a receber os pobres, os doentes, os deformados, os divorciados, os travestis, os aidéticos, os viciados, os mendigos, os maltrapilhos, os bêbados, os fedorentos e os rejeitados de todas as estirpes, do que qualquer vertente protestante. Qualquer igreja católica tem a maturidade suficiente de receber um destes excluídos sem exigir nada em troca pelo oferecimento gratuito do perdão e do acesso a Deus.

Ao contrário de nós protestantes, os católicos vão à missa e não à igreja, pois esta é terreno santo e onipresente do qual não há como escapar. E se Deus está em todo lugar, sua proteção é imediatamente acessível, seu poder é inevitável, seu favor é onipresente. Deus e a vida podem ser celebrados adequadamente em qualquer lugar, fora das paredes do templo, porque não há como fugir da segurança da igreja, que é outro nome para o entendimento do reino de Deus. Coitados de nós, protestantes, se a palavra igreja não se tornar relevante novamente, se não se tornar algo de extrema importância nas nossas vidas. Para nós, protestantes, a igreja é um local definido e também uma atividade. A palavra igreja soa como lugar-comum, algo indiferente, que não faz o coração bater mais forte. Associamos igreja a atividades, compromissos devidamente agendados e muito bem organizados. Consideramos que quem faz mais é mais espiritual.

Percebo claramente que a palavra igreja quando ouvida por um católico, acende todos os seus sentimentos de amor, de cuidado e de bem-aventurança. Essa palavra desperta nele os sentimentos que só uma criança pode nutrir com relação à sua mãe: gratidão, reverência, respeito e amor sincero. Algo semelhante ao sentimento que toma conta de uma pessoa quando, depois de uma longa ausência, retorna ao lar de sua infância.

Os católicos têm as suas novenas, suas velas, suas promessas e seus sacrifícios, mas recorrem a eles e deixam-nos lá, em paz. Retornam para as suas casas e vivem as suas vidas como gente normal, confiados na improvável graça como um cristão verdadeiro deveria fazer. Não vêem a necessidade, como nós protestantes, de reacenderem seus sacrifícios incessantemente, domingo após domingo pela eternidade. Não há exclusão numa igreja católica, pois nem mesmo vêem necessário criar um rol de membros. Os católicos não vêem a necessidade de dar evidência do seu mérito pela atividade incessante, pelo acúmulo insano de conhecimento e pelos ajuntamentos febris.

Nós protestantes somos imbecis, pois adoramos atividades infinitas, diplomas e graduações, números de vendas e rol de membros. Os protestantes adoram números, balanços, resultados positivos – adoram contar vantagem. O número de famosos no meio católico se comparado com a realidade do meio protestante é irrisório.

Os católicos têm as suas repetições, mas podem recorrer a elas em oculto, na privacidade das suas casas. Têm as suas imagens, mas não se rebaixam com a mesma facilidade ou as mesmas desculpas que nós damos à ganância, que é nossa idolatria. Eles têm os seus santos, mas preferem beijá-los a sustentá-los com dinheiro, como fazem nós, os protestantes. O pior é que seus santos são gente simples como eu e você, que buscaram verdadeiramente a face do Deus vivo.

Nós, protestantes patifes que somos, temos os santos mais carolas, obtusos e bandidos do mundo, os quais vivem como marajás em seus palácios. Os católicos têm as suas penitências, mas conhecem o arrependimento. Tem as suas peregrinações, mas não se rebaixam na idiotice de seguir todos para o mesmo lugar.

Se somos nós os religiosos, porque deveríamos ser os que mais tagarelam sobre a graça? Para nós a igreja é um local e uma tarefa; para o católico é uma segurança e um estado de espírito. Para nós a graça é um conceito importante; para um católico é estar vivo.



quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Patife

Hoje ficou claro pra mim que sou um patife, uma farsa, um safado. Considero-me assim e com certeza alguns de vocês dirão que já estava na hora de eu me reconhecer.

Sou um camarada raso – sem profundidade alguma. Muito marketing e pouco conteúdo. Se comparado com as pessoas que me cercam, não possuo quaisquer sinais de maturidade ou equilíbrio emocional.

Muito disso pode ser percebido na forma como trato as pessoas. Passei muito tempo dizendo que nada me é mais importante do que as pessoas em detrimento do mundo material, mas nunca consegui deixar prova concreta deste meu perfil. Jesus, o Filho do Homem, anunciou que até os pecadores tratam bem os seus amigos – nem isso eu consigo fazer. Eu trato mal aqueles que me amam.

Nunca consegui retribuir na mesma medida o carinho que recebi de pessoas como o Jackson, o Edu ou o Hermann. Nunca sequer retribui a admiração dispensada em meu favor como a que o Jorginho ou o Maico tem constantemente por mim. Isso sem mencionar tudo o que recebi da Renata ou da minha mãe e que, como safado que sou, nunca soube agradecer.

Sou um patife. Um camarada como eu suga toda a atenção que meus amigos e amores me dão, e só dou aquele carinho básico de retorno para manter minha imagem de bom moço, de menino bonzinho, de um sujeito agradável. Sou uma farsa.

Recordo-me neste instante que disse inúmeras vezes que “não há amor maior que dar a vida por seus amigos”, tentando ser um imitador de Cristo. Mas, sempre foi da boca pra fora, pois na essência das minhas atitudes, sempre foi no sentido de ser um amigão, aquele que dá suporte. Em outras palavras, eu sempre me coloquei numa posição privilegiada de conselheiro ou de quem cita as palavras de Jesus com certa destreza, ao invés de me colocar no lugar das pessoas.

Eu posso abraçar e beijar as pessoas, posso oferecer carona e carinho, posso emprestar dinheiro ou fazer juras de amor eterno, mas não tenho envergadura moral para me identificar com elas.

Passei a conviver naturalmente com as mentiras que contam a meu respeito, afinal eu sou uma fraude. Estou me referindo ao fato de pessoas afirmarem coisas boas ao meu respeito como meu amor ou minha gentileza. Porém, eu não amo ninguém como devo e não sou nenhum pouco gentil. Sou uma verdadeira tentativa de ser algo bom – mas, uma excelente farsa, um perfeito canalha.

Quando dou algum presente, tal atitude carrega na alma a idealização de receber mais fama ou atenção. Sou uma sanguessuga. E pra ser honesto, raramente dou presentes. Fico dizendo que não sou apegado a coisas materiais para fugir da realidade de minha negligência. Esqueço que o desapego é espiritualmente medido pelo quanto se dá, e não pelo pouco que se tem.

Para aumentar ainda a ferida causada pela minha canalhice, recebo tratamento maravilhoso das pessoas. Levo a vida de um rei. Sou elogiado, sou amado, sou querido, sou paparicado, sou bem quisto. Até hoje, ninguém me tratou como realmente mereço – eu sou uma farsa, um canalha, um patife, um ingrato.

O mal que não quero, esse sim, eu faço. Enquanto o bem que todos fazem e que afirmo a todos os pulmões ser a coisa certa a fazer, não faço coisa alguma para realmente faze-lo.


sábado, 7 de novembro de 2009

Solidão

Às vezes eu sinto uma dor no peito, uma angústia inexplicável. O choro é manifesto quase que em seqüência e muitas vezes me encolho no sofá, apertando os dedos das mãos junto ao coração. Nem sei por que isso acontece. Simplesmente vem essa tristeza e quando percebo, estou envolvido numa solidão sem tamanho.

Eu gosto de ficar sozinho. Sou esquisitão. Nestes instantes de abandono, seleciono uma música saudosista, e passo a refletir na melodia e na poesia da canção. Os olhos se enchem de lágrimas ao som dos quatro rapazes de Liverpool. Fico imaginando um mundo de sonhos, onde sou um homem realizado, satisfeito com o que produzi e percebendo que muitos dos que eu dediquei carinho e atenção, sabem retribuir.

Tem dias que não me sinto empolgado com nada, não me sinto confiante em nada, e minha estima chega a aproximar-se do zero. Passo a detestar meu corpo, judiado pela obesidade e pelo sedentarismo. Arrumar-se é quase que uma tortura de campo de concentração: calças e camisas roubam-me a força do sorriso. Nada me serve confortavelmente.

Não sou idiota. Ser magro ou possuir um corpo atlético não me livraria de nenhum dos meus momentos de tristeza, porque nem sei de onde eles vêm. Entendo perfeitamente que minha vida não possui blindagem alguma, e que toda a pancada que vier na minha direção me acertará em cheio se eu não me desviar.

Sinto o gosto do fel do abandono, feito o companheiro que percebe o amigo desviando o passo para não cumprimenta-lo publicamente. Eu tento não passar por momentos assim, mas continuo muito tosco; fico magoado por pouca coisa, abro espaço pro silêncio, e a introspecção aparece feito velha amiga.

Assim vou levando minha vida: tropeçando nos cadarços, cambaleando feito cego em tiroteio, tateando a porta para encontrar o buraco da fechadura. Confesso que tenho medo do abandono, mas percebo que a solidão me cai bem.